No final de semana passada a Record, ligada à Igreja Universal do Reino de Deus, exibiu uma das reportagens mais tendenciosas que eu já vi. Foram nove minutos ininterruptos batendo no kit de combate à homofobia. Uma vergonha. Não havia outro lado, como ao jornalismo convém adotar. Todos os “outros lados” (por exemplo, um ativista gay) eram igualmente contra. Ficou parecendo que o governo inventou a campanha sozinha, só por falta do que fazer, como se ela não fosse uma grande reivindicação dos movimentos LGBTTT.
É fácil ser contra o que Bolsonaro, aquele misto de deputado ultrareaça com Tiranossauro Rex, apelidou de “Kit gay”, ainda mais se repórteres te param na rua perguntando: “O que você acha deste vídeo com um desenho animado de dois rapazes se beijando ser exibido na escola pro seu filho de cinco anos?”. Olha, nesses termos, acho que até eu seria contra! E é mais fácil ainda ser contra quando nos escondemos por trás do manto sagrado da ignorância. É sério que a gente compra o que a mídia fala do projeto, sem nem sequer tentar descobrir o que ele representa? (Recomendo que você veja os três vídeos e julgue por si mesm@: vídeo um, vídeo dois, vídeo três. Agora me diga se eles têm o potencial de converter um hétero pra homossexualidade ou pra discutir o bullying?).
Uma canjinha: o kit representa apenas uma tentativa de educar os professores de escolas públicas para lidar com o enorme problema da homofobia. Seria usado com alunos do ensino médio, a partir dos 15 anos de idade (longe de serem criancinhas indefesas). O material incluía três vídeos bastante didáticos e nem um pouco explícitos (qualquer novela das seis mostra cenas cem vezes mais calientes, mas entre casais heterossexuais ― então pode?) e uma cartilha com sugestões de exercícios para o professor levantar na sala de aula. Só. Poderia ser usado, por exemplo, em aulas de educação sexual para que se discutisse a diversidade e a tolerância à diferença.
Mas parece que vivemos num tempo de trevas (eu me senti em plena Idade Média durante a condenação à legalização do aborto durante a campanha presidencial do ano passado), em que ensinar tolerância é algo negativo. Putz, então eu tenho uma noção equivocada da educação. Pensei que educar fosse ensinar a pensar com senso crítico, a respeitar as diferenças, a conviver harmoniosamente em sociedade. Essas coisinhas básicas que eu adoraria que os pais ensinassem. Mas não, não ensinam. Se ensinassem, não haveria tanta gente preconceituosa no planeta. Por isso é absurdo ouvir quem é contra o kit anti-homobofia dizer que “só a família deveria tocar nesses assuntos com os filhos”. Tradução do que isso significa: “ninguém deve falar pro meu filho sobre homossexualidade, porque assim quem sabe dá pra fingir que essa depravação não existe”.
E aí, quem vai ensinar um ser em formação a não ser preconceituoso? Os pais, contaminados por uma geração ultrapassada de preconceitos? As diversas igrejas e religiões? Não me faça rir. As igrejas adotaram a bandeira contra a homossexualidade como se fosse sua única missão na vida. Ah, quem sabe a mídia possa educar? Desculpe, mas agora passei mal. Essa mídia que sobrevive de programas humorísticos que só perpetuam o preconceito? Que passa suas opiniões disfarçadas de jornalismo neutro e imparcial? (porque este texto que vos fala é uma opinião. Eu não finjo que sou objetiva). Talvez os amigos possam educar... Não, acho que não. Sobra a escola. Uma escola que é feita de pessoas, pessoas tão preconceituosas como as da família, da igreja, da mídia.
Mas por que seria necessário que se combatesse a homofobia (e tantos outros preconceitos)? Porque o ódio mata entre 200 e 400 gays, lésbicas, travestis e transgênero por ano. São brasileiros que são assassinadas unicamente pela sua orientação sexual. O Brasil é um dos países mais homofóbicos do mundo e, apesar do governo do PT ter sido o mais acolhedor às causas homossexuais na história, os números da violência permanecem inalterados. Nas escolas, os casos de bullying contra meninos “afeminados” e meninas “másculas” são altíssimos. Nossa sociedade é tão cruel com os adolescentes que se descobrem homossexuais que há incontáveis suicídios entre eles (nos EUA, existe uma campanha que promete que a vida melhora pro gay caso ele sobreviva à adolescência). É isso mesmo que a gente quer como sociedade? Desde quando não aceitar o diferente faz com que ele vire “normal”? Desde quando ser “normal” é necessariamente bom?
“Normal”, pelo jeito, é aquele ser burrinho que dói que pensa que, se o seu filho conversar sobre homofobia, ele se transformará num homossexual. Pô, é que nem achar que se posicionar contra o racismo faz um branco virar negro. Ou que um homem que seja a favor dos direitos iguais pras mulheres deixa de ser homem. Não faz o mínimo sentido, mas é nisso que os “normais” creem. O “normal” é aquele que pensa que defender um mundo sem intolerância é querer endoutrinar alunos. Ahn, sinto ser eu a contar isso pra você, mas endoutrinados eles já estão. Senão não precisariam da escola para ensinar-lhes a se ver livres dos preconceitos.
Pra ser franca, não sei se uma campanha de combate à homofobia nos moldes do kit teria resultados, mas sei que é preciso tentar. Por isso é extremamente desolador que o governo tenha voltado atrás e aposentado o kit anti-homofobia antes mesmo de tê-lo lançado. Diz-se que houve pressão da bancada evangélica, que teria ameaçado abrir uma CPI pra investigar o Palocci se o governo não desistisse da campanha. Se for verdade, é muita deceção. Porque, né? Dane-se o Palocci! Ele nem deveria estar nessa administração pra começar. Mas é assim que o governo pretende se comportar? Trocando fidelidade partidária por direitos humanos?
É óbvio que os gays, e a causa dos direitos humanos em geral, estariam em lençóis piores se a direita houvesse vencido as eleições. Mas é muito decepcionante ver um governo recém iniciado como este recuar num ponto tão importante. E mais decepcionante ainda é perceber o comportamento de manada de boa parte da população, que fala sem querer ouvir e insiste em perpetuar preconceitos. E que não tem pudor em informar-se através de uma mídia nada interessada em informar.