A utilização de parcela crescente das terras agriculturáveis do mundo para o plantio de matéria prima de biocombustíveis levanta questão sobre os problemas da fome e da falta d’água que atingem cerca de um bilhão de pessoas.
Texto de Verena Glass - Carta Maior
O etanol, combustível muito em voga depois da recente divulgação das perspectivas sombrias do aquecimento global, há tempos tem jogado um papel importante no cenário agrícola mundial, uma vez que se trata de energia produzida, basicamente, a partir da cana de açúcar, do milho e de madeira.
Para o mercado internacional, é fato que o etanol é muito mais uma alternativa aos altos preços do petróleo do que uma preocupação ambiental, o que alimenta todo tipo de especulações sobre o seu potencial de crescimento. Segundo o pesquisador Luis Cortez, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o mercado mundial produz atualmente algo como 40 bilhões de litros de etanol; para se substituir 10% da gasolina no mundo, será preciso aumentar este volume para cerca de 150 bilhões de litros.
No Brasil, responsável hoje pela produção de cerca de 16 bilhões de litros de álcool combustível, a cana ocupa uma área agrícola de cerca de 5,5 milhões de hectares. Num exercício de futurismo, Luiz Cortez avalia que, se se planejasse atingir no país a marca de 110 bilhões de litros anuais – meta proposta ano passado por Jeb Bush, irmão do presidente dos EUA, para todo o continente americano -, os canaviais teriam que ocupar 75 milhões de hectares, o que ultrapassaria os 55 milhões que perfazem toda a área usada hoje pela agricultura nacional. Portanto, para o mercado o grande desafio agora é detectar os potenciais campos de biocombustível para atender a crescente demanda.
Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID, cujo presidente, Luis Alberto Moreno, lançou recentemente, junto com o ex-Ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, e o mesmo Jeb Bush, a Comissão Interamericana do Etanol), a União Européia estaria fora do jogo, já que teria que utilizar 70% de sua área agriculturável para atingir a meta de 10% de substituição dos fósseis por etanol. Já os EUA, que querem trocar 20% da gasolina por etanol até 2017, mesmo utilizando o potencial máximo de sua agricultura para a produção de milho(matéria prima usada no país), chegariam apenas aos 15%.
Já a América Latina, afirma o BID, apresenta as condições ideais de clima e espaço para a produção de matéria prima (cana e milho). “Com o Brasil na liderança da produção de etanol, uma densidade demográfica baixa, no geral com clima úmido, e o potencial de melhorar a eficiência da agricultura, a América Latina apresenta grandes vantagens no sentido de se tornar um grande produtor de biocombustível”, avalia o banco, apostando também em inovações tecnológicas que permitirão produzir com maior eficiência etanol de madeira e celulose.
As vantagens para os países latinos, diz o BID, são geração de postos de trabalho nos diferentes estágios de produção do combustível, e fortalecimento das economias nacionais. O banco reconhece, no entanto, que haverá impactos negativos, como “concentração de terra, redução de empregos [no campo] por conta da mecanização, e aumento dos preços dos insumos agrícolas”. Por outro lado, “o agronegócio terá seu lucro assegurado”, bem como os grandes monocultivos e distribuidores de combustível.
Por fim, África e Ásia fecham, ainda com menor peso, as apostas para o mercado de etanol. Pioneira na África do Sul, a empresa Ethanol África, uma holding composta de várias multinacionais, traça um esboço do que espera da região. “Os africanos têm o potencial de se tornar os Árabes da indústria de biocombustíveis. Temos um potencial para utilizar vastas áreas deste continente massivo para produção destes combustíveis, só precisamos de água e fornecimento de energia”, diz Johan Hoffman, diretor executivo da empresa, que já programou a construção de oito usinas na África do Sul.
Em um mundo onde, de acordo com as Nações Unidas, 1 bilhão de pessoas sofre de fome crônica e má nutrição, e 24 mil morrem diariamente de causas relacionadas a esses problemas – entre estes, 18 mil são crianças -, faz-se necessário questionar se as terras do planeta se destinarão preferencialmente a atender aos cerca de 800 milhões de proprietários de automóveis, ou à garantia da segurança alimentar mundial. E mais, se o Sul continuará a desempenhar o papel de fornecedor da matéria prima necessária para possibilitar ao Norte manter seu padrão de consumo.
O caso mais conhecido de impactos da demanda por etanol sobre a segurança alimentar vem ocorrendo no México, atualmente grande fornecedor de milho para fabricação de biocombustível para os EUA. Nos últimos anos, a exportação do grão levou a um aumento exponencial (em algumas regiões chegou a 100%) do preço da tortilla de milho, base da alimentação de mais de 50% da população mexicana. Em proporção parecida, também houve aumento da ração animal (gado, aves, suínos e outros) e das sementes para plantio.
O questionamento a se fazer então, segundo o jornalista econômico americano Ronald Cook, é: “se os preços do milho vem crescendo até 55% ao ano, isso não aumentará o preço da carne, do frango, do peixe, do leite e dos ovos? Ou do cornflakes, do óleo de milho, e demilhares de outros alimentos que usam o grão como base? [Nos EUA], desde 2000 o preço da carne subiu 31%, do ovo 50%, do adoçante de milho, 33% e do cornflakes, 10%”.
“Distúrbios” na produção, oferta e preços de alimentos são um fenômeno comum onde os investimentos em biocombustíveis têm aumentado. Kelly Naforte, membro da coordenação do MST em Ribeirão Preto (SP), o maior pólo canavieiro do país, constata que, há muito,a maior parte dos alimentos consumidos no município vem de fora. Nos últimos anos, até frutas e legumes não são mais produção própria, afirma. “Ainda temos alguns pequenos agricultores [produtores de alimentos] na região, mas a cana e o eucalipto estão fechando o cerco sobre eles também”, comenta Kelly.
A observação do diretor executivo da Ethanol África, Johan Hoffman, de que “só precisamos de água e fornecimento de energia” para transformar o continente africano em um gigante bioenergético, contém um elemento interessante: a produção de matéria prima para o etanol, e a fabricação do próprio combustível, é dependente de uma grande oferta de água.
Segundo o consultor ambiental e editor da revista inglesa New Scientist, Fred Pearce, “a cana é uma das culturas mais sedentas do planeta. Na maior parte do mundo, utiliza-se caros sistemas de irrigação que têm atingido grandes rios e lençóis freáticos. A medida de consumo da cana é de 600 toneladas de água para uma tonelada de produto”. Atualmente, adenda, 1 bilhão de pessoas não tem acesso à água potável.
Segundo o pesquisador da Embrapa Meio Ambiente, José Maria Ferraz, os gastos de água embutidos tanto na produção de cana quanto na do próprio etanol – na produção de um litro de álcool gasta-se 13 litros de água, e ainda sobram 12 litros de vinhoto, sub-produto extremamente poluente normalmente utilizado na adubação dos canaviais – não é considerada no preço de venda, o que, do ponto de vista econômico, é uma grande desvantagem para o produtor, uma vez que a água está se tornando um bem altamente valorizado.
Em que medida os governos e o mercado têm direito de transformar a agricultura de produtora de alimentos em produtora de combustível é um debate ético urgente. Ou, mais que ética, quando esta em jogo a sobrevivência mais básica da população mundial e seu direito fundamental à comida e à água, a questão se torna política. Perante as ameaças do aquecimento global, potencializado por um doentio e insustentável padrão de consumo principalmente dos países ricos, não se pode deixar de acessar todo e qualquer instrumento que se contraponha à catástrofe ambiental. Mas há que se pesar quais são realmente as mudanças mais necessárias: se o hábito de comer e beber dos mais pobres, ou a insanidade consumista dos mais ricos.
Com informações do boletim Inovação Unicamp