O mundo culto celebra neste 2015 os 400 anos da publicação da segunda parte do Dom Quixote. Na Wikipédia, o resumo das simplificações na internet, se escreve:
“O Dom Quixote é considerado a grande criação de Cervantes. O livro é um dos primeiros das línguas europeias modernas e é considerado por muitos o expoente máximo da literatura espanhola”.
É muita modéstia para um dos maiores gênios que já houve, porque a sua obra-prima é, pelo menos, o expoente de toda literatura moderna.
Para esse aniversário, lembrou a jornalista Sylvia Colombo:
“Esta segunda parte, que se celebra agora, traz a particularidade de levantar questões em torno do conceito de “autor” e “personagem”, assim como sobre o significado a autoria naqueles tempos em que releituras e apropriações eram tão comuns. É preciso lembrar que Cervantes não tinha intenção de escrever esse segundo volume do ‘Quixote’ até que o sucesso do primeiro provocasse uma enxurrada de obras apócrifas protagonizadas por seu herói. Quando veio à tona a de um Alonso Fernández de Avellaneda, publicada em 1614, fazendo imenso sucesso, Cervantes se incomodou e contra-atacou com a sua versão da continuação das aventuras do cavaleiro. Nela, denunciava de maneira irônica a versão apócrifa dentro da própria narrativa. A Espanha que surge nessa segunda parte também já é uma Espanha diferente, menos rural e migrando para as cidades.”
E aqui eu cito o maior criador da literatura que já houve, quando ele faz o seu personagem criticar a falsificação do Dom Quixote:
“... seu dia de São Martinho há de chegar, como o chega a todo porco, pois as histórias inventadas tanto têm de boas e deleitosas quanto mais se aproximam da verdade ou de sua semelhança; e as verídicas, quanto mais verdadeiras, melhores são”. Que belo pensamento e lição literária, que alcança todas as falsificações literárias até hoje, em escritores vazios de experiência mas cheios da pretensão de possuírem uma fantasia imensa. As histórias inventadas são boas quanto mais próximas forem da verdade.
Mas espero que por favor se evitem, no grande aniversário da segunda parte do Dom Quixote, as linhas de Cervantes recontadas, um crime não faz muito cometido por Ferreira Gullar. Como declarou o poeta adaptador ao Estadão: “Os diálogos longos e as descrições foram enxugadas”. Isso lembra mais um copidesque na velha redação do jornal. Brincadeira. A pretexto de um didatismo que pressupõe incapacidades, penso que não se deve adaptar um clássico para versões em quadrinhos ou leituras mais simplificadas. Será o mesmo que furtar uma riqueza, na vã presunção de que um adolescente não entenda a imensa diversão que é ler Cervantes. E teremos um crime de falsificação, enfim. Todo jovem que ler essa adaptação pensará que conhece o Dom Quixote.
No original de Cervantes, por exemplo, está escrito:
“y más cuando llegaba a leer aquellos requiebros y cartas de desafíos,
donde en muchas partes hablaba escrito: ‘La razón de la sinrazón que a mi razón se hace, de tal manera mi razón enflaquece, que con razón me quejo de la vuestra fermosura’. Y también cuando leía: ‘Los altos cielos que de vuestra divinidad divinamente con las estrellas os fortifican y os hacen merecedora del merecimiento que merece la vuestra grandeza’. Con estas razones perdía el pobre caballero el juicio. .”
Mas em Ferreira Gullar para o mesmo trecho:
“Encantado com a clareza da prosa e os volteios do estilo, o pobre cavaleiro foi perdendo o juízo”.
Viram? Perderam-se a graça e a ironia magnífica de Cervantes.
E aqui lembro o que observei uma vez sobre as adaptações de Machado de Assis para jovens: adaptar um clássico é o mesmo que esconder dos leitores o melhor do escritor, porque não se acredita que um adolescente seja tão inteligente quanto o indivíduo que adapta. Imaginem, é exatamente o contrário. Note-se que o problema não é só de forma, de linguagem, dos dribles, firulas e recursos de linguagem, é da visão de mundo enformada nessa prosa, inseparável.
Quem assim age é semelhante ao personagem da anedota em que Einstein foi solicitado por um repórter, que insistente pedia A Teoria da Relatividade mais palatável. O paciente cientista se pôs então a explicar a sua teoria em palavras mais simples, recorrendo a imagens do cotidiano. E perguntava:
– Entendeu?
E o repórter respondia:
– Doutor Einstein, eu, sim. Mas os leitores… não haverá um modo mais simples na Relatividade?
E o cientista voltava com novos recursos de imagens, para perguntar depois de bom tempo:
– Entendeu?
E o repórter, finalmente satisfeito:
– Sim, agora, sim.
E o grande Einstein desalentado:
– É, mas agora já não é a Teoria da Relatividade.
Ou seja, o Dom Quixote recontado pode ser tudo, mas já não será o Dom Quixote. Espero que a celebração entre nós se dê pelo original, que é impagável.
No Vermelho http://www.vermelho.org.br/noticia/272436-35