Por Lia Bianchini
No blog O Cafezinho
Os passos tornavam-se mais apressados na medida em que ela percebia que não estava sozinha na rua, até então, vazia. O barulho dos pés que vinham atrás se tornava cada vez mais próximo de seus ouvidos. A poucos metros de casa, ela tenta correr. Em vão. Seu perseguidor é mais rápido, conseguindo deixa-la encurralada e imobilizá-la. Jogada ao chão, os segundos parecem horas. Desde aquela noite, o rosto e o corpo de um desconhecido acompanham-na em todos os seus dias.
A história não é ficcional. Ela foi contada por G., estudante de pedagogia, estuprada no caminho cotidiano de volta da faculdade para seu apartamento. O caso de G. está longe de ser isolado, pois, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2013, o número total de estupros registrados no Brasil foi de 50.320, equivalente à média de seis a cada hora, um a cada dez minutos.
“A violência sexual é a mais cruel forma de violência depois do homicídio, porque é a apropriação do corpo da mulher – isto é, alguém está se apropriando e violentando o que de mais íntimo lhe pertence. Muitas vezes, a mulher que sofre esta violência tem vergonha, medo, tem profunda dificuldade de falar, denunciar, pedir ajuda”, explica Aparecida Gonçalves, secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República.
De fato, apesar de constante, a violência sexual se perpetua silenciosamente. De acordo com dados do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan), há estimativa de que, no Brasil, pelo menos 527 mil pessoas são estupradas por ano e que apenas 10% destes casos chegam ao conhecimento da polícia. Ainda segundo informações do Sinan, 89% das vítimas são mulheres e 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos e conhecidos da vítima.
Para a advogada Natália Trindade, existe um fator moral que impede as vítimas de notificarem a violência sofrida. “No Brasil, ainda há muito a ideia de que a mulher que foi vítima de violência sexual é a verdadeira culpada pela violência sofrida. Culpada porque estava andando sozinha, culpada porque estava usando roupa curta, culpada porque foi simpática, culpada porque é mulher. Mas existem também questões financeiras: muitas das mulheres vítimas de violência sexual são dependentes economicamente do seu violentador”, afirma.
A advogada problematiza também o atendimento às vítimas, que desfavorece a denúncia da violência. “Nesse ponto, nos deparamos com o machismo institucional: policiais que minimizam a violência sofrida, delegado que realiza o atendimento pré-julgando a vítima, a enorme burocracia para que ocorra o julgamento”, diz Natália.
O que diz a justiça
No código penal brasileiro, estupro é constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso, conforme definido no capítulo sobre os crimes contra a liberdade sexual do Código Penal, após a unificação dos tipos penais "atentado violento ao pudor" e "estupro", com a Lei nº 12.015, em 2009.
Em complemento, a Lei Maria da Penha ajuda a evidenciar formas de violência sexual que vão além do estupro. Em seu artigo 7, alínea III, a Lei Maria da Penha descreve a violência sexual cometida em contexto de violência doméstica e familiar como sendo: qualquer conduta que constranja a vítima a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade; que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
Além disso, desde 2013, o atendimento obrigatório e imediato no Sistema Único de Saúde (SUS) às vítimas de violência sexual é garantido pela Lei nº 12.845, que estipula a obrigatoriedade do fornecimento da pílula do dia seguinte em todos os hospitais da rede pública, garante o direito a diagnóstico e tratamento de lesões no aparelho genital, o amparo médico, psicológico e social, a profilaxia de doenças sexualmente transmissíveis, a realização de exame de HIV e o acesso a informações sobre seus direitos legais e sobre os serviços sanitários disponíveis na rede pública.
O Código Penal garante também o direito ao aborto às vítimas de violência sexual.
Para Natália Trindade, o Código Penal brasileiro passou a prezar pela autonomia das mulheres. “Desde 2009, a mulher não é mais vista pela justiça como um corpo sexualizado pertencente ao seu pai ou marido, e sim como um sujeito de direito que precisa ter seus direitos sexuais e reprodutivos garantidos”, afirma a advogada.
Além das Leis, em 2005 foi lançada a Norma Técnica: Atenção Humanizada ao Abortamento, pelo Ministério da Saúde, que retira a obrigação da vítima de estupro em apresentar um Boletim de Ocorrência (BO) para dispor do direito de atendimento na rede de saúde. O objetivo é dar atenção prioritária à saúde da vítima, antes de encaminhá-la a um órgão policial.
As consequências psicológicas
G. foi vítima de violência sexual aos 22 anos de idade. Ela morava sozinha no Rio de Janeiro, cidade para a qual se mudou para fazer faculdade, e, após a violência sofrida, teve que voltar para Resende, onde moram seus pais. A jovem foi diagnosticada com um quadro grave de depressão e passou a fazer terapia e a tomar medicamentos psiquiátricos regularmente. Hoje, três anos após o caso, G. voltou a estudar, mas nunca largou o tratamento médico e psicológico.
Segundo a psicóloga Thalita Neves, as vítimas são duplamente violentadas: física e psicologicamente. “As mulheres vítimas de violência sexual acabam vivenciando diversas formas de sofrimento, dentre elas, a violência psicológica, caracterizada pela transgressão do estado emocional da vítima envolvendo traumas e danos morais. Grande parte dessas mulheres passa por situações de ameaças, medo, danos emocionais e constrangimento. São mulheres submetidas à violência e ao receio de perderem a própria vida, o que comumente denominamos de “pressão psicológica”, explica Thalita.
A pesquisa “Violência sexual: estudo descritivo sobre as vítimas e o atendimento em um serviço universitário de referência no Estado de São Paulo” demonstra que, para além das consequências físicas imediatas (gravidez, infecções do aparelho reprodutivo e doenças sexualmente transmissíveis), as mulheres vítimas de violência sexual têm grande probabilidade de desenvolver distúrbios na esfera da sexualidade, apresentando maior vulnerabilidade para sintomas psiquiátricos, principalmente depressão, pânico, tentativa de suicídio, abuso e dependência de substâncias psicoativas.
No entanto, a violência sexual não afeta psicologicamente apenas as mulheres que já foram vítimas.
O medo de ser estuprada ou assediada é uma constante na vida das mulheres.
De acordo com a campanha “Chega de Fiu Fiu”, realizada em 2013 pelo site Think Olga, que ouviu 7.762 mulheres, 99,6% delas já foram assediadas em locais públicos; 81% das participantes já deixaram de fazer alguma coisa (ir a algum lugar, passar na frente de uma obra, sair a pé) com medo do assédio; e 90% delas já trocaram de roupa por medo de ser assediada.
Direitos em xeque
Aguarda deliberação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados um Projeto de Lei que afeta diretamente os direitos básicos já previstos em Lei para as mulheres vítimas de violência sexual: o PL 5069/2013.
De autoria do atual presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o projeto pretende tipificar como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo, prevendo penas específicas para quem induz a gestante à prática de aborto.
Caso aprovado, o projeto deve alterar a definição de violência sexual, que passará a considerar apenas casos que resultam em danos físicos e psicológicos; o atendimento médico-hospitalar, uma vez que a vítima deverá, como primeiro passo, registrar queixa da violência sofrida, passar por um exame de corpo de delito e, só então, ser atendida em uma rede de saúde; o tratamento preventivo, pois o projeto dificulta o acesso à pílula do dia seguinte e a informações sobre direitos legais; e o aborto, um direito garantido às vítimas de violência sexual que deixará de existir.
“Esse PL representa um retrocesso aos direitos das mulheres. Ele submete a mulher ao machismo institucional. Infelizmente, temos na Câmara dos Deputados a tal bancada da "bíblia", formada por religiosos que querem preservar a "vida" a qualquer custo, ainda que este custo seja a vida da mulher. Esse PL é só mais um dentre muitos que compõem a obra dessa bancada que visa criminalizar de todas as formas a mulher e a sua saúde”, afirma a advogada Natália Trindade.