Abdalaziz de Moura é filósofo, teólogo, especialista em educação popular e educador.
O conceito de Bode Expiatório tem sua origem descrita no capítulo 16 do livro dos Levíticos do Antigo Testamento da Bíblia. De acordo com a tradição de Moisés, uma vez por ano os hebreus se juntavam para fazer a expiação dos seus pecados, ou seja, uma penitência pública para ter os pecados perdoados. Segundo a Bíblia, dois bodes eram escolhidos e a sorte era lançada sobre eles pelo sacerdote. Um era sacrificado e com seu sangue o sacerdote aspergia o altar e o povo, o outro era posto vivo no meio da assembléia e o sacerdote impunha as duas mãos sobre ele e passava para o bode todas as iniqüidades dos israelitas, todas as suas desobediências, todos os seus pecados (Lev.16,20) e depois uma pessoa encarregada levava o bode para o deserto[1], para um lugar que não tivesse retorno. Assim, o bode pagava pelos pecados das pessoas e essas se libertavam da culpa e das conseqüências do pecado.
Esse rito religioso é uma tradução do sentimento e da experiência da humanidade em transferir para os mais fracos e mais pobres a responsabilidade pelos atos mal conduzidos dos mais fortes. Encontrando um mais indefeso, fragilizado, vulnerável social, política e economicamente esse paga pelos pecados dos mais fortalecidos. É a tradução do provérbio popular que repete “o pau sempre cai em cima dascostas dos mais fracos!” É um dado comum às religiões trazerem para o rito o que a humanidade experimenta na vida. Com as denúncias sobre o Ministro dos Esportes que saiu aparecem na imprensa e nos meios políticos desses dias, as ONG como os bodes expiatórios.
No meu tempo de juventude, década de 60, circulava nos meios literários o livro Vigésima Quinta Hora do autor romeno, Virgil Georghiu. Era a história de um jovem do campo que, por circunstâncias totalmente alheias a sua vontade, terminou sendo confundido com os judeus perseguidos por Hitler e peregrinou sofrendo em sua terra Romênia, Polônia, Tchecolosváquia, Áustria e Alemanha até o final da segunda guerra mundial. O autor descreve como os judeus na época se tornaram o bode expiatório para canalizar todos os ódios, todas as carências, todas as fragilidades do regime nazista e serviu de pretexto para Hitler entrar nesses países com as tropas alemãs.
O regime para se sustentar precisava ter um bode bem identificado, conhecido, capaz de receber a canalização das frustrações das populações sedentas, de desviar a atenção da opinião pública, de ofuscar outros problemas, sob pena da revolta do povo voltar-se para seus governantes. Quanto maior as mazelas, mais pecado para transferir para o bode. Esse deveria morrer para pagar, compensar e perdoar os pecados dos reais atores dos pecados ou ser condenado a viver em um lugar distante do deserto, sem possibilidade de retorno ao seu lugar de origem. Com o distanciamento de um e com sangue do outro, os reais pecadores sentiam-se purificados para continuar suas lidas. Assim, aquietava-se a opinião pública, que em vez de se revoltar contra seus líderes, despejava sua indignação sobre o bode.
Desde que meu professor de Bíblia, Padre Nércio Rodrigues explicou em sala de aula e alguns anos depois eu li o romance romeno, passei a entender com mais clareza e evidência inúmeros fatos da vida cotidiana da convivência humana e da vida política. É incrível como acontece e se repete e as pessoas não se apercebem desse jogo, que é sutil, porém, não deixa de ser evidente. Quando os pecados dos grandes aparecem na mídia a opinião pública cobra esclarecimento do Estado ou do Governo. Esses se apavoram, sofrem um pouco e depois apresentam um bode para que de agora em diante, o bode pague pelos pecados.
No caso do Ministério dos Esportes o bode expiatório da vez são as ONG. Aliás, não é a primeira vez, nem a segunda, nem a terceira. Hoje é um bode fácil de encontrar, com endereço conhecido, financeiramente vulnerável e indefeso. Na primeira oportunidade de falar para a imprensa o novo Ministro dos Esportes Aldo Rabelo foi logo falando que “não iria fazer convênio com as Ong”. Logo identificou o bode para sacrificar e para distanciar. O rito estava definido, de agora em diante a opinião pública pode ficar tranqüila (pelo menos, por um bom tempo!), os atores, autores e agentes responsáveis podem pecar de novo ou continuar pecando, porque já foi encontrado o bode para pagar pelos pecados. O seu sangue os limpará dos pecados e falcatruas! Já tem para quem a opinião pública destinar sua indignação e os jornalistas vão nos deixar quieto para ir atrás desse bode!
Imediatamente, as suspeitas espalharam-se por todos os ministérios do governo federal e vai respingar sobre os estaduais. É preciso apresentar para a opinião pública os bodes expiatórios para pagar esses pecados. As ONG na conjuntura atual apresentam-se como a presa fácil. Vamos refletir um pouco nesse texto sobre essa situação, tentar contribuir para esclarecer o quadro, que é muito mais complexo do que se apresenta e se pinta na mídia e nos meios políticos.
2. Esclarecendo a categorização
O conhecimento popular utiliza provérbios tais como “cuidado para não jogar a criança fora com a água suja que a banhou!”, “é preciso distinguir e separar o joio do trigo, se não, confunde e ao arrancar o joio, arranca também o trigo”. Um dos equívocos de interpretação sobre as Organizações Não Governamentais é considerá-las como se fosse uma categoria social única, um monobloco, uma expressão que engloba todas as entidades que não são estatais ou privadas. Como se todas fossem resultado da mesma conjuntura, da mesma época, das mesmas motivações e tivessem os mesmos objetivos.
Apesar de todas as resistências, o Estado e uma parte de políticos da situação, da base do governo e da oposição teimam em tratar as ONG dessa forma. Nas chamadas públicas e editais repetem o mesmo equívoco, colocam todas as ONG no mesmo saco e ainda misturam com empresas de consultorias, institutos de responsabilidade social de empresas, prestadoras de serviço, Organizações Sociais de Interesse Público (Oscip), Universidades ou Associações de Professores, organizações sociais (Os). As ONG concorrem nas chamadas públicas com essa identidade diversificada, diferente e têm que dar conta das mesmas condições para ganhar a chamada.
Exemplificando, para qualquer ONG concorrer a editais de Assistência Técnica e Extensão Rural – ATER têm que concorrer com as mesmas condições de empresas privadas de ATER, empresas públicas e trabalhar meses e meses com seus próprios recursos para poder receber depois. Para as pessoas do governo, isso é isonomia, oportunizar a todos as mesmas condições. Para os que se sentem desiguais é ampliar as desigualdades sobre o equívoco de que os diferentes devem ser tratados igualmente. Tratar os desiguais igualmente éaumentar as desigualdades.Ong só é igual com todas essas outras instituições para o governo. Na prática elas enfrentam mil dificuldades quando assim são tratadas.
3. Um pouco de resgate histórico
Boa parcela das ONG nasceu para dar conta de tarefas que o Estado não conseguia dar. Ou por que essas tarefas não eram contempladas nas suas agendas, nem em seus orçamentos. Ou porque na região o Estado era ausente. Ou por que era uma tarefa muito inovadora, não reconhecida, nem legitimada ainda. Ou por que pretendia defender um território, um bioma, uma etnia que se sentia menosprezada. Ou por que assumiu um compromisso histórico com uma causa, uma população que não se sentia contemplada. Ou por que o serviço público prestado a uma categoria ou a uma população era insuficiente, ineficiente, ineficaz. Ou por que queria fazer um trabalho social com autonomia das igrejas, dos governos.
Essas ONG nasceram com missão, compromisso histórico em alguns casos, até sendo perseguidas, renegadas, incompreendidas por lideranças locais ou ignoradas. Com os impactos de sua intervenção pedagógica os resultados foram aparecendo e a democratização do país veio contribuir para o reconhecimento, a visibilidade nos meios de comunicação. Os empresários também passaram a se aproximar, as organizações internacionais cobravam dos governos locais o reconhecimento dessas entidades.
Para manter suas ações as ONG buscavam recurso na CooperaçãoInternacional da Europa, América do Norte, que mantinha também meios de captação de recursos para esse fim. Com a Cooperação Internacional os recursos vinham em geral com planos trienais e eram renovados se as ações dessem resultados positivos, a prestação de conta fosse aprovada. Essa forma de repasse de recursos permitia planejamento de curto, médio e longo prazo, compromisso com os públicos das ações, monitoramento junto aos participantes dos projetos e alguns valores como a confiança, autodeterminação, autonomia eram cultivados. Os doadores tinham um código de ética para reconhecer até onde ia sua capacidade de intervenção.
No período da repressão da ditadura nem se cogitava dialogar com o Estado, nem com o Governo. Com a redemocratização foi ficando mais fácil e com a filosofia de um estado mínimo as ONG foram se firmando cada vez mais. Passaram a dialogar com o governo e até a receber recursos públicos para cuidar de sua missão original, de seu trabalho específico. Foi o tempo também que a Cooperação Internacional diminuiu ou transferiu seus recursos para outros continentes e países e o Brasil começou a entrar em cena como país emergente. O debate sobre Responsabilidade Social das empresas levou os empresários também a apoiarem projetos de ONG, criar seus institutos e patrocinar projetos.
Desde as mobilizações sociais para a Constituinte de 1988 e, sobretudo, após, e mais ainda a partir do Governo de Lula, as ONG e os Movimentos Sociais passaram a influenciar o Estado e os Governos a adotarem políticas que antes eram bandeiras das ONG e Movimentos Sociais. As Políticas Públicas para Criança e Adolescente, antes de serem assumidas pelos Governos, foram ações das ONG e Movimento como o de Meninos e Meninas de Rua. O mesmo aconteceu com as Políticas Públicas para as mulheres e de gênero; foram práticas das ONG feministas, dos Centros de Mulheres, de Movimentos de Mulheres Trabalhadoras.
E assim, veio acontecendo com inúmeras outras políticas. A sociedade civil foi fortalecendo seu campo de influência e o Estado foi aos poucos reconhecendo, legitimando e trazendo para si as tarefas que eram realizadas por ela. Quem não se lembra da campanha contra a fome pela vida liderada por Betinho! Hoje tem outro nome, Brasilsem fome e Brasil sem Miséria. Os últimos governos assumiram e deram status de Política Pública. Com esse programa, Lula tornou-se referência internacional de políticas contra a desigualdade. Ele executou o que Dom Helder Câmara pregava como Arcebispo de Olinda e Recife por onde teve oportunidade de viajar e falar e o que Betinho praticou.
Os exemplos são muitos e nos mais diversos campos da atividade humana: etnia, raça, sexo, índios, negros, povos da floresta, catadoras de coco babaçu, pescadores, recicladores de lixo juventude, meio ambiente, tecnologias apropriadas ou alternativas, agroecologia, reflorestamento, biomas, economia solidária, mercados alternativos, microcrédito, comunicação, arte e cultura, direitos humanos, cidadania, deficientes físicos, educação contextualizada, educação do campo, educação popular, educação de jovens e adultos, saúde alternativa, fitoterapia, medicina popular, moradia, agricultura familiar, de igualdade racial, segurança alimentar e nutricional.
Para essas políticas há poucos anos esquecidas, hoje o Estado e os Governos consagram uma série de instâncias públicas (ministérios, secretarias especiais, diretorias, gerências), programas e projetos, órgãos de gestão democrática (conselhos nacionais, estaduais, municipais), conferências nos mesmos níveis e orçamentos. Há pouco tempo eram iniciativas das ONG e Sociedade Civil organizada.
Foi um movimento ascendente, de baixo para cima, do local para o regional e nacional, de conquista, de mobilização social, de militância aguerrida, com pouquíssimos recursos financeiros, com muitaconcertação enegociação políticas, com profissionalização, com compromisso histórico com os envolvidos até chegar ao ponto que está hoje. Os governos de Dilma e Lula se beneficiaram e muito desse processo. Muitas das lideranças das ONG e Movimentos Sociais migraram para os dois governos e os da base aliada nos Estados. Muitos se tornaram também militantes partidários.
4. De um movimento ascendente para um descendente.
No processo ascendente de reconhecimento e legitimação continuou nascendo ONG, mas dessa vez, num contexto já diferente. Não era mais motivo de perseguição, e sim de reconhecimento. Era a bola da vez, da criação de negócios, de empreendimentos, de “fim da era do emprego”. Participar de ONG passou a ser chic! A ser um bom negócio! A ser um serviço profissionalizado e não tanto de militante. Acrescente a essa conjuntura o crescimento do terceiro setor em todos os países mais desenvolvidos, que também favoreceu muito o surgimento de ONG.
O Governo atual e o Estado, agora muito mais equipados de instâncias, de serviços, de braços, por estarem já atendendo às grandes bandeiras antes das ONG e dos Movimentos Sociais querem as ONG do seu lado, como aliados, como braço para executar as políticas do Estado. E agora a direção do movimento é inversa. Não é mais as ONG que influenciam o Estado, que lhe aportam valores, que lhe sugerem pistas para a solução dos problemas, que lhe oferecem capital social e humano. É o Estado que oferece seus recursos financeiros e dita todas as regras, impõe as crenças e os valores, define as metas, os serviços, as normas de gestão, o que as ONG podem pagar ou não pagar, a forma de contratação de seu pessoal.
As ONG, por piores ou melhores que sejam viraram braços doEstado. São executores baratos das políticas do Estado, mão-de-obra. Os editais e as chamadas públicas cada vez mais retiram o uso da inteligência, da capacidade intelectual, da “cabeça-de-obra” para se tornarem apenas mão-de-obra. E o que é mais grave, mão-de-obra barata, sem compromisso trabalhista, sem inchar a folha dos Governos, descartáveis. Só servem enquanto executam tarefas do Estado e dos Governos. Esses não querem nenhum compromisso em mantê-las, em cuidar de suas estruturas como teriam de fazer se fossem eles próprios que tivessem de fazer. Tornaram-se um exército de reserva de mão-de-obra barata para os Governos e o Estado.
Uma inversão histórica de papéis como essa traz inúmeras outras conseqüências. Os princípios éticos que comandavam as ONG e seus militantes e suas ações passam a ser diferentes. O compromisso deixa de ser com o público, com as bases, com os resultados e impactos efetivos. Os técnicos, os dirigentes, os educadores da ONG deixam de estar nas atividades junto ao público para estar diante dos computadores, do SICONV e dos sistemas informatizados que o governo exige para ser preenchidos pelas ONG. Produzem pouco intelectualmente, porque seu tempo agora só dar para atender a burocracia das chamadas públicas e dos editais. Como esses são sempre tangenciais, nunca incorporam a atividade e a missão de uma ONG, os dirigentes e técnicos têm que ficar atrás de novos editais, de novas chamadas, formando um círculo vicioso de dependência e de insustentabilidade.
Os critérios de avaliação e hétero avaliação mudam. Antes uma ONG eficiente era a que tinha a confiança de seu público, o envolvimento com a causa, a que produzia resultados nas pessoas, no entorno, que tinha presença junto às comunidades... Agora a ONG eficiente é aquela que seus dirigentes têm e sabem fazer articulação política, as que têm a confiança dos dirigentes partidários, a que é bem articulada politicamente (para não dizer partidariamente!), as que forneceram quadros para o aparelhamento dos governos, as que fazem campanha para partidos políticos.
As ONG que tentam ser autônomas têm dificuldade de conquistar chamadas, de captar recurso, são vistas atravessadas pelo Estado e pelos Governos. É como se não merecessem a confiança deles, mesmo que tenha o melhor trabalho do mundo! Boa é aquela que faz a campanha do deputado do partido! Que perdeu a capacidade de criticar. Os dirigentes políticos não reconhecem uma ONG autônoma e independente, com pensamento próprio, com atividade própria. Só aceitam se for a favor ou de oposição.
5. Para continuar
Exemplos como o do caso do Ministério dos Esportes é típico desse movimento avassalador, descendente, de Brasília para os Estados, como um rolo compressor sobre as ONG, exigindo que as ONG se comportem como o Estado, inversamente ao anterior que era as ONG influenciando o Estado e os Governos. Há uma mudança histórica, que sugere re-significação do papel das ONG, dos Governos, do Estado, da sociedade civil.
Precisamos de um mutirão de idéias, de pontos de vista, de produção intelectual, de intercâmbio. A necessidade de um debate mais amplo, mais aberto é urgente. Há muitas concepções de sociedade, de estado e de governo subjacentes ao fenômeno que precisam vir a tona, serem mais explicitadas, sob pena de ficarmos ao sabor das emoções, dos acontecimentos e do imediatismo.
Esse texto pretende ser apenas um tijolo nessa construção. É um ponto de vista particular do autor, aberto a complementações, críticas, sugestões. Se servir como uma oportunidade de aprofundar a temática o autor se dá por satisfeito.
29 de outubro de 2011.
[1] . Azazel era o nome dado a esse local do deserto, que significa na língua original, destinado a se distanciar ou afastar-se. Nota da versão francesa da Bíblia por PIROT L e CLAMER A. pp. 125. Éditions Letouzey et Ané, Paris. 1951.